terça-feira, 8 de dezembro de 2009

Participação popular, cultura e desenvolvimento humano: o diálogo da localidade com o global

(Publicado na revista Cultura: Diálogos para o Desenvolvimento Humano, Fundação Tide Setubal, 2009)

Tião Soares

“Assim como cidadania e cultura formam um par integrado de significações, assim também cultura e territorialidade são, de certo modo, sinônimas. A cultura, forma de comunicação do indivíduo e do grupo com o universo, é uma herança, mas também um reaprendizado das relações profundas entre homem e seu meio, um resultado obtido através do próprio processo de viver. Incluindo o processo produtivo e as práticas sociais, a cultura é o que nos dá a consciência de pertencer a um grupo, do qual é o cimento”.
Milton Santos

Quando fui estimulado por Maria Alice Setubal a organizar o Seminário de Cultura: Diálogos para o Desenvolvimento Humano, do qual esta publicação é um dos principais produtos, sabia que me encontrava diante de um desafio: como mobilizar a comunidade de São Miguel Paulista, bairro localizado no extremo leste da cidade de São Paulo, a dedicar um dia inteiro para discutir a centralidade da cultura e a integração das políticas públicas de cultura, tendo como pano de fundo o desenvolvimento sustentável e o fortalecimento da localidade em diálogo com o global?
Mas por que a participação da comunidade, não só de localidades como São Miguel Paulista, tem se constituído num desafio? Diversos fatores contribuem para isso, mas nessa introdução ao rico conteúdo do seminário destacarei dois deles, pelo caráter decisivo que possuem: as noções prevalentes no Brasil do que venham a ser participação popular e cultura.

O fastio da participação
Ainda é muito comum em nosso país, quando se pensa em desenvolver trabalhos sociais, se ter em mente uma receita cheia de vontades para salvar a comunidade. Em muitos casos, esse receituário é responsável por encontrarmos jovens e crianças que participam de ações de algum projeto social e sequer sabem por que estão lá. São projetos nos quais os monitores ou arte-educadores esquecem de contextualizar os fazeres existentes. Preferem se valer dos saberes trazidos em mão única, de cima para baixo.

Fruto dessa maneira de se relacionar com as comunidades, surge o cansaço participativo, expresso no desabafo “cansei de participar”. Mas o que essa frase quer dizer? Não é exatamente de participar que as pessoas estão cansadas, mas de certo tipo de participação. Aquela que se esgota no freqüentar reuniões, onde sempre se é pautado pelo que é trazido e não se tem a chance de contribuir, de dar a sua opinião e ser escutado.
Nessa noção de participação, espera-se tão somente contar com a presença física do público, formando um aglomerado de pessoas que por limites operacionais não terão voz e vez. Para que passemos da ansiedade quanto à presença de público para o desafio da participação ativa da comunidade, em que esta seja “parte da ação”, em que todos possam contribuir com suas experiências, saberes, fazeres e sugestões, torna-se necessário reformularmos essa noção predominante de participação.

Não precisamos de um novo modelo de roda, mas fazer a antiga roda rodar. Experimentar uma nova forma de ação social em que se amplie e se areje o diálogo com a localidade. Isso pressupõe um difícil exercício de humildade para compreendermos melhor o nosso próprio discurso e ir além, empreendendo outras práticas comunitárias em torno da participação, criando ou revigorando espaços e ações que valorizem as vivências locais e tragam na sua concepção a prática da educação compartilhada.
Caso queiramos enfrentar esse “fastio participativo”, é preciso ousar e experimentar novas formas de atuação social, na qual a comunidade faça parte das ações. Com isso, amplia-se o pertencimento e com ele cresce a participação popular, pois a comunidade vislumbra a possibilidade de ver atendidas as suas aspirações e participa efetivamente para garantir a continuidade das ações.

Mas qual a relação entre essa participação da comunidade local, a cultura e a globalização? De qual cultura estamos falando?

Se o pilar da participação é o pertencimento, esse por sua vez se fundamenta na cultura – resultado dos costumes, modos de vida de pessoas e grupos, construída no dia-a-dia, nas trocas e vivências coletivas.
Nesse conceito, cultura e cidadania são inseparáveis. Não se pode falar em cultura sem se falar em participação e em conquistas de direitos. Por outro lado, não há cidadania sem se levar em conta os conhecimentos e os valores da comunidade. Um dos objetivos indispensáveis de um projeto social é despertar nos participantes um maior sentimento de pertencimento à sua localidade.

Ora, um dos contrapontos a um dos maiores riscos da globalização – a homogeneização – é o desenvolvimento de identidades próprias, ligadas à experiência pessoal de cada um no lugar onde se vive. De modo que garantir “ser” parte das ações gera a ampliação do número de pessoas participando das atividades reflexivas e dos debates nas instituições. Isso fortalece a relação das pessoas com as suas comunidades e amplia o grau de pertencimento social.

Entretanto, há riscos. Um ponto que merece cuidados redobrados é o respeito à cultural local. Carece saber antes de qual ou quais culturas estamos a falar e a respeitar. Caso contrário, poderemos potencializar culturas que se apresentam em desacordo com os princípios que declaramos no projeto social. Um dos exemplos disso é a cultura da violência, que muitas vezes é potencializada no âmbito da cultura local e, desapercebidamente, se faz presente e é veiculada nas ações de projetos sociais.

Cabe perguntar sempre: de que culturas estamos falando? Da cultura do automóvel que é priorizada em detrimento de outras práticas e vivências coletivas, como é o caso da rua e de outros espaços públicos?
A cultura da fome, desagregadora e potencialmente invisível aos olhos até dos que dela sofrem, é também uma outra vertente a ser observada, contextualizada, descontextualizada e re-contextualizada, como forma de contribuir para a reflexão e debate das comunidades populares no contexto social onde se vive?
Deste modo, a questão se torna bastante confusa e neces

sitamos de urgência neste debate em direção a uma compreensão do que estamos falando. É primordial respeitar os saberes e as culturas locais. Entretanto, antes precisamos ter claro de que cultura estamos a falar e compreender a forma pela qual passamos às pessoas da comunidades estas questões.
A cultura tem ocupado importantes espaços nos debates das políticas públicas. A questão cultural é um tema bastante instigante para a abertura de espaços de reflexões ou para situar algumas posições de governos comprometidos ou não com temas deste grau de relevância.

Entretanto, torna-se necessário empreender um esforço responsável no sentido de repensarmos o nosso exagerado crédito nos milagres de uma “suposta” política cultural, com seus especialistas e re-inventores da roda de plantão que lá estão, saídos de gabinetes acarpetados, a propor milagres mirabolantes.

Há que se estar alertas e, ao mesmo tempo, ousar. A concepção atual, que enxerga a cultura de forma fragmentada, restrita ao universo da organização de eventos, deliberadamente empobrece sua potencialidade. A proposta é a aposta. Colocar a cultura no centro, tirando-a da posição periférica, complementar, suplementar, que hoje ocupa no cenário das políticas públicas. Para isso, no contexto atual, de intensas relações globais e fortes diferenças sociais, ganha importância crucial o local, a cidade. Entretanto, precisamos entender a cidade como o centro onde a cultura acontece. Cada pessoa tem uma paisagem imaginária de cidade.

Assim, não se pode criar um re-configurador arbitrário do imaginário da cidade, mas ao contrário. Precisamos pensar a partir de outro ponto de vista, mudar as perguntas para encontrar novas respostas. Devemos compreender a cidade como sendo um cenário do conhecimento e ir além, mudar o paradigma, ler a cidade como sendo um cenário do reconhecimento. Passar da visão da unicidade – da informação, do evento e do desconhecimento – para a visão polissêmica da diversidade, enxergar e reconhecer os diversos matizes da pólis, favorecer as redes de conhecimento no intuito de aumentar o capital social.

Isso não é compatível com a concepção de cultura como evento e sim com a idéia de cultura como conjunto de iniciativas que atendam a reivindicações de diferentes linguagens e gêneros, bem como dos indivíduos criaturas criadoras. Com uma idéia de política cultural firmada no diálogo intercultural e na hipótese da centralidade da cultura na concepção de políticas públicas – assim mesmo no plural, cultura presente em todos os campos onde a vida na cidade acontece: no transporte, na economia, no planejamento urbano, no meio ambiente, na saúde, na segurança alimentar, na comunicação, na educação, no lazer e na cultura. Isso porque não há desenvolvimento econômico sem desenvolvimento cultural e, por sua vez, sem cultura não há desenvolvimento humano.

Acreditamos que a democratização do acesso à cultura é atingida a partir de uma política de garantia de direitos construídos por pessoas fazedoras e, portanto, pertencentes ao produto e não apenas como consumidoras de pacotes impostos de cima para baixo, do Norte para o Sul, do Centro para a Periferia. Nessa noção, a cultura é entendida como fator preponderantemente de transformação social. Daí seu valor inclusivo.
O que pretendemos é garantir uma prática ”nova-antiga” para a discussão, no sentido de ajudar a pensar a cultura como política pública e compreendê-la desta forma, criando assim a responsabilidade de incluir pautas constitutivas da criação coletiva, balizando-se, todavia, na construção universalizada dos direitos à criação. Mais do que isto: visando a uma cidadania cultural plena que nos remeta ao pertencimento.

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